sexta-feira, 20 de maio de 2011

Utopias que ficaram pelo caminho - PARTE 1: A Modernidade Iluminista

Antes de discutirmos a possibilidade do surgimento de novas utopias, vale a pena revisitarmos algumas que ficaram pelo caminho. E esse texto inaugurará uma série de postagens sobre esse tema e cada texto versará sobre uma que não se efetivou.

E começaremos pelo projeto da modernidade marcado pelo Iluminismo, que sob a ótica de Sérgio Paulo Rouanet, não se efetivou plenamente. Segundo o autor, esse projeto, o qual chama de “civilizatório”, tem como ingredientes a: 1) universalidade, que visaria todos os seres humanos, independentemente de barreiras nacionais, étnicas ou culturais; 2) a individualidade, que consideraria os seres humanos como pessoas concretas e não como integrantes de uma coletividade e que se atribui valor ético positivo a sua crescente individualização; e 3) a autonomia, ou seja, a capacidade de pensar por si mesmo sem a tutela de religião ou ideologia, a agirem no espaço público e a adquirirem pelo seu trabalho os bens e serviços necessários à sobrevivência material.

Segundo Rouanet, esse projeto ficou pelo caminho, pois: 1) o universalismo foi sabotado por uma proliferação de particularismos – nacionais, culturais, raciais, religiosos; 2) a individualidade, apesar de parecer cada vez mais presente, é substituída pela coletividade do consumo; e 3) a autonomia intelectual baseada na visão secular do mundo está sendo deixada para trás pelo reencantamento do mundo e a autonomia política se transformou numa coreografia eleitoral encenada de tempos em tempos.

E Rouanet explicita bem seu projeto utópico de iluminismo:

“Para ela [utopia iluminista], todos os homens e mulheres, de todas as nações, culturas, raças e etnias, desprendendo-se da matriz coletiva e passando por intelectual, ou seja, o direito e a capacidade plena de usar sua razão, libertando-se do mito e da superstição, sujeitando ao crivo da razão todas as tradições, seculares ou religiosas, problematizando todos os dogmas, criticando todas as ideologias, e desenvolvendo livremente a ciência, o pensamento especulativo e criatividade artística, o que pressupõe um sistema cultural que tenha institucionalizado e dado condições efetivas de exercício à liberdade de pensamento e de expressão, a autonomia política, ou seja, o direito e a capacidade plena de participar dos processos decisórios do Estado, o que pressupõe um sistema político que tenha institucionalizado e dado condições efetivas de funcionamento à democracia e aos direitos humanos, e a autonomia econômica, ou seja, o direito e a capacidade plena de obter, sem prejuízos para os outros indivíduos e sem danos para o meio ambiente, os bens e serviços necessários ao próprio bem-estar, o que pressupõe um sistema econômico que tenha institucionalizado e dado condições efetivas de funcionamento aos direitos dos agentes econômicos, dentro dos limites compatíveis com os objetivos superiores da justiça social e da preservação da natureza.”

Como podemos observar, essa modernidade iluminista de Rouanet realmente não se efetivou. Pelos próprios argumentos do autor, ainda estamos distantes de alcançá-la. Entretanto, será que ela é válida? Será que é possível a universalidade sem sobrepujar culturas e particularidades de grupos sociais? Ou será que as particularidades são válidas, na medida em que algumas mulheres africanas têm seus clitóris mutilados e outras são apedrejadas por adultério em alguns países do Oriente Médio? Ou que, em nome de liberdade religiosa, animais são sacrificados de maneira descriminalizada? São questões que merecem maiores reflexões. De fato, a globalização coloca culturas frente a frente e choques acabam sendo inevitáveis.  

E é importante também refletirmos o fato de que as utopias surgem como projetos ideais de sociedade. E esses projetos, ao passarem da teoria para prática, são distorcidos por um lado ou para o outro. Como exemplo, na teoria, uma revolução seria o campo ideal para o surgimento do comunismo. E o catolicismo, para o anticomunismo. Mas na prática, a revolução russa se transformou em uma ditadura totalitária. Já entre os católicos brasileiros, desenvolveu-se na década de 1970, com Leonardo Boff, a Teologia da Libertação, que foi muito mais subversiva que muita revolução dita comunista no planeta. Mas destas outras utopias, falaremos em textos futuros...

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